O Curiosólogo

revista cultural caseira.
baseada em florianópolis, santa catarina.

Um samba para Antonieta de Barros

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Fotos: Andressa Colbalchini

Entre a pesquisa, a preservação e a resistência cultural, o Samba da Antonieta ocupa o Centro Leste de Florianópolis levando uma visão histórica do samba e promovendo criação de público para esse movimento.

Por Renan Bernardi

Atualizado pela última vez: 03/06/2024, às 09h11.

Em 1988, Paulinho da Viola cantava: “há muito tempo eu escuto esse papo furado / dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou”. Mas para quem pesquisa e atua na preservação da memória, o dia não clareia na história do samba. Por outro lado, essa condição faz com o que ele sempre ande pelo escuro, sem saber exatamente o que vai encontrar pela frente.

É possível também pensar que, ao dizer que o samba acaba quando clareia, Paulinho pode (intencionalmente ou não) estar se referindo ao processo de embranquecimento de uma cultura popular criada e desenvolvida pela população negra brasileira.

“O samba é uma estrela que a névoa escondeu / mas o seu calor ilumina o céu”, diz outro samba – esse de Elton Medeiros, Eduardo Gudin e Roberto Riberti, que continua: “sou tão somente um pedaço de lua / que reflete o samba pro povo da rua / perder a ilusão / e dançar alegria”. E é nessa abordagem, sendo pedaços de lua na rua de Florianópolis, que o Samba da Antonieta vem brilhando há dois anos na Rua Victor Meirelles, atrás do abandonado Colégio Antonieta de Barros.

Foto: Andressa Colbalchini

“A gente começou a conversar eu e o Skol, que é o dono do bar, lá na pandemia. Ele chegou pra mim e falou: ‘vou abrir um bar no Centro’, uma Bugio no Centro, né? E aí eu falei: ‘cara, vamo fazer um samba de rua’. Porque a gente teve essa história ali no [Bar do] Noel, quando era o [Grupo] Bom Partido, que é praticamente o Samba do Antonieta, troca umas figuras ali, a Fernandinha que tava na época não tá mais. A gente sempre tinha essa ideia de voltar pra rua um dia, tentou outros lugares e tal, aí enfim: grana não dava, espaço não dava, até que a gente chegou nessa conversa com o Skol e passamos um ano, durante a pandemia, planejando esse samba: vai ser assim, vai ter isso e aquilo, vendo como que ia fazer, como ia viabilizar as coisas. O JB [n.e: JB é João Batista Costa, que foi ator e funcionário da Fundação Franklin Cascaes], que faleceu recentemente, era nosso contato na Fundação e, através do Carlos Raulino, que era amigo dele e produtor do Samba de Terreiro, fizemos contato com ele e aqui com a casa. Aí eles agilizaram autorizações pra gente poder tá na rua tudo certinho”, é o que me conta Raphael Galcer, violonista e um dos organizadores do Samba da Antonieta, um projeto que acontece todos os sábados, a partir das 17h, na rua em frente à Bugio – bar no Centro Leste de Florianópolis que cede estrutura e organização para que a roda aconteça.

Além de Galcer, participam como membros fixos da roda Jandira Souza (voz e percussão), Jean Leiria (cavaquinho), Fabrício Gonçalves (percussão), Leandro Pereira (percussão), Giovana Dutra (percussão) e Dôga (percussão). Como Raphael mencionou, boa parte dessa turma já vinha tocando junto há muito tempo em projetos como o grupo Bom Partido e o Samba de Terreiro, e ainda colaborando com As Pastorinhas de Florianópolis.

Mas para essa retomada das atividades do samba na rua, eles decidiram propor também um outro nome para demarcar esse novo capítulo da história. “Aí a gente ia voltar com o Bom Partido, mas fomos conversando entre os músicos, trocando essa ideia, e a galera achou que não, que não valia. Eu nem lembro de onde surgiu, se foi o Skol que deu a ideia, se foi um de nós que falou ‘ah, Samba da Antonieta!’, porque a gente tá atrás do Colégio Antonieta de Barros, né? E porque ela é uma mulher preta importante pro Estado, pra cidade, num contexto muito a ver, porque o samba é meio isso: uma coisa marginal, que tem essa relação, que também sofre racismo pra caralho, sofre preconceito, e a gente tem uma mulher preta a frente do grupo, a Jandira, que justamente representa isso. Então a gente viu todas essas conexões entre a Antonieta e a gente, aí ganhou esse nome – e o Bom Partido morreu.”

Nas percussões: Leandro Pereira (esquerda) e Dôga (direita). Ao fundo, de xadrez e copo na mão, Raphael Galcer. Foto: Andressa Colbalchini

O Bom Partido foi um grupo criado por Carlos Raulino e Jandira Souza em 1997. Com uma abordagem para a pesquisa e a preservação da memória e história do samba, eles estiveram envolvidos na criação das velhas guardas musicais das escolas de samba de Florianópolis (começando pela Copa Lord e depois auxiliando no desenvolvimento de outras) e também fizeram contatos com sambistas do Rio de Janeiro, trazendo para a cidade nomes como Monarco, Dona Ivone Lara, Leci Brandão e Noite Ilustrada. “Veio muita gente do samba do Rio interessada nesse projeto, que era um negócio que tava morrendo. Depois da Velha Guarda da Portela, no Rio, teve os movimentos de São Paulo, Terreiro Grande e outros projetos antes, Morro das Pedras, uma galera da pesquisa mais pesada. E o Bom Partido veio com uma representação no Sul desse movimento”, diz Galcer.

Perpetuando essa veia de pesquisa e envolvimento com o samba na capital catarinense, todos os membros do Samba da Antonieta são ou foram envolvidos com as escolas de samba da cidade. Galcer tocou por 11 anos na Protegidos da Princesa, e Giovana Dutra, que também estava presente na nossa entrevista, fazia a direção de cuíca da Dascuia. “Através do Fabrício [Gonçalves], que na época era diretor, eu comecei a fazer aula de percussão, e daí a cuíca começou na escola de samba mesmo. Depois comecei a estudar pandeiro, tamborim, outros instrumentos, comecei a praticar em roda aberta – e fui. Na verdade, eu fui a última a entrar no Samba da Antonieta, quando eu entrei o grupo já tava formado”, diz ela.

Por todos os membros participarem do Samba de Terreiro, que é um projeto voltado à pesquisa dos sambas das velhas guardas, Galcer diz que a relação do grupo com as escolas de samba é algo imprescindível. “Porque faz parte do samba, pelo menos no contexto que a gente estuda, faz parte a escola de samba, né? São escolas de samba antigas que a gente tá estudando, mas são escolas de samba, tem uma conexão forte com carnaval, com toda manifestação, da relação do samba com o carnaval e isso tudo faz a gente se conectar ali.”

Jandira Souza e Giovana Dutra. Foto: Andressa Colbalchini

Envolvidos há muitos anos no cenário cultural de Florianópolis, os entrevistados afirmam que, por mais que haja um interesse da cidade pelo samba, esses movimentos ainda são muito marginalizados. “Eu acho que, culturalmente, aqui as pessoas não gostam muito de samba, pelo menos na minha concepção. Apesar de ter vários movimentos, acho que ainda tem um pouco de preconceito, sabe? Em relação ao samba. A gente atinge um pequeno número de pessoas, não é uma coisa que é tão falada, não tem tanta visibilidade aqui na cidade”, diz Giovana.

Raphael reforça esse comentário citando como exemplo os festivais de música que acontecem em Florianópolis. “O jazz tem seu espaço de respeito, até o choro tem um pouco mais de respeito do que o samba, o samba é visto como bagunça, a galera já vê como zoeira. Aí a gente vê a questão de grana: vai tocar lá um trio de jazz é uma grana, vai tocar um grupo de samba a galera acha ‘ah, eles vêm pela festa’. Então a gente tem que sempre conquistar, a gente ganhou isso aqui na raça: ser reconhecido pela Câmara de Vereadores, ganhar ali o reconhecimento público, isso tudo a gente fez na luta, na raça. Mas ainda existe muito, dentro do meio musical, essa visão de que o samba é bagunça – e não é, principalmente pra gente, não é.”

Longe de ser bagunça, o Samba da Antonieta é pesquisa, história e resistência. “A cultura no geral e o samba, que ainda existe mesmo com todo preconceito, sofre uma grande comercialização. Então você vê N casas de samba, mas que tratam aquilo como uma coisa mais comercial, que tem que cantar uma coisa mais animada, ou uma coisa mais famosa, se não a galera não vai curtir, não vai vir. E a gente vai completamente no pensamento contrário disso, tratando o samba como um documento histórico mesmo. As coisas que a Jandira canta aqui, você provavelmente não vai ouvir em outra roda, e isso tem uma importância histórica”, conta Galcer.

Mesmo com o foco na preservação da memória do samba, o grupo compõe e reproduz canções autorais dos membros, em uma relação diferente com o novo dentro do samba, algo que, novamente, me faz lembrar de Paulinho da Viola: “quando penso no futuro / não esqueço meu passado”. Raphael diz que “esse lance do novo é importantíssimo, porque se não acaba, morre, né? Os compositores vão morrendo e, se ninguém faz nada, morre junto. Mas a gente tem um apreço, um cuidado com essas composições. Eu mesmo demorei muitos anos pra fazer um samba, fiquei muito anos no Bom Partido, sou compositor já desde adolescente, mas demorei muito pra acreditar que eu tinha embasamento suficiente. Pô, eu convivia com a Jandira, com Dinho [n.e: irmão de Jandira e figura importante do samba florianopolitano], com a galera fazendo um puta dum samba tradicional, pensei ‘vou chegar com meu violão cheio de nota, vou fazer um samba moderno’, não, né? Então pra eu chamar alguma coisa minha de samba demorou muito tempo, pra que eu tivesse essa confiança.”

Fabrício Gonçalves (pandeiro) e Jean Leiria (cavaquinho). Foto: Andressa Colbalchini

Galcer também reforça que a presença do Samba da Antonieta na região do Centro Leste de Florianópolis é outra forma de resistência. “Tem um livro da Cauane Maia [n.e: “Vozes negras em Florianópolis – escrevivências antropológicas do Morro das Mulheres (2020)”, editora Appris] que conta a história desse Centro, como os pretos foram sendo empurrados para a [Avenida] Mauro Ramos, pra subir o morro, né? O pessoal vendia coisas lá no Mercado [Público] e de repente não podia mais, aí vieram pra cá, de repente não podia mais também. Então meio que, a gente estar aqui, e antigamente o Bom Partido tava no Noel – que tem uma tradição antiga de música, antes da gente ainda: Luiz Henrique Rosa frequentava o boteco, fazia seresta, Zininho tava nesses rolês, enfim, tinha uma história. Você consegue visualizar essa conexão, eles sendo empurrados, os caras destruindo o Miramar [n.e: bar do Centro de Florianópolis que, entre os anos 30 e 70, foi frequentado por muitos músicos e compositores], o Zininho fez o samba pro cara não destruir, mas ele destruiu, e o samba era uma carta dele: ‘digníssimo senhor prefeito’, pedindo pro cara não derrubar o bar. E assim foi acontecendo, né? O samba vai mais pra cá, o samba vai mais pra lá. Então acho que, a gente vivendo nesse espaço, tem esse link.”

Canção de Zininho interpretada por Paulinho Carioca.

Nesse espaço de resistência e preservação, o Samba da Antonieta é cauteloso na escolha de seu repertório e também na hora de selecionar os convidados para se juntarem à roda. “Acho que a gente sempre teve uma questão muito nossa, essa coisa da pesquisa e tal, de ser um pouco fechado. Mas o que você vê ali no Samba da Antonieta, o que eles tão fazendo, principalmente na percussão, tem toda uma grande pesquisa pra acontecer, então nossa interação acaba se fazendo um pouco mais difícil, né? Mas a gente, recentemente, trocou essa ideia ‘não, vamo trazer a galera, vamo dialogar com as outras vertentes também um pouquinho’. Mas o pessoal já pisa aqui diferente, você vai ver a Júlia Maria cantando lá no Borogodó e você vai ver a Júlia Maria cantando aqui: o repertório é diferente, ela já dialoga mais com a gente”, conta Galcer.

Giovana aproveita para comentar que, muitas vezes, esse cuidado com o que – e quem – toca na roda é mal visto por outros sambistas. “Como eu falei, eu fui a última pessoa a chegar, entendeu? Só que tem muita gente de fora que pensa que, como é uma roda de samba, ela tem que ser aberta, que tem que abrir pra quem tá começando. Só que, eu fui bem mais pra essa linha do que a gente toca aqui, tanto é que por esse motivo – e claro: amizade, afinidade – que eu acabei entrando junto com esse grupo, né? Mas acham que tem que dar mais oportunidade pras pessoas, só que tem muita gente que não ouve isso, não toca, não procura ir atrás de conhecimento e acha que tem o direito de tocar só porque toca samba. Eu já ouvi muita crítica quanto a isso.”

No dia que cobrimos o Samba da Antonieta, Gustavo Lopes participou tocando violão e 7 cordas no lugar de Raphael Galcer durante o primeiro bloco. Foto: Andressa Colbalchini

Apesar de tantas adversidades, o resultado do trabalho que, há dois anos, o Samba da Antonieta desenvolve na Rua Victor Meirelles, é uma criação de público interessado na pesquisa que o grupo desenvolve. “Meio que educa o público, né? Eu tenho uma amiga minha que não conhecia muito [samba], aí começou a frequentar a roda e ‘pô, que massa, a música é massa, tocam pra caramba, mas que música é essa que eu nunca ouvi?’, sabe? Ela foi uma pessoa que me disse que o samba aqui tava educando ela, que hoje ela conhece vários cantores, várias cantoras, vertentes que ela não conhecia, nunca tinha ouvido falar nem o nome da pessoa”, diz Giovana.

Galcer também conta uma história que ilustra bem essa educação. “Aconteceu de cantores vir aqui cantar samba famoso e a galera ficar meio assim, sem entender, porque não tá acostumado a ouvir isso aqui. E a pessoa fica meio ‘meu, o que tá acontecendo?’, aí mete um samba da antiga e a galera ‘eee! é isso porra!!’ hahaha.”

Foto: Andressa Colbalchini

A ideia de Paulinho, de pensar no futuro sem esquecer do passado, segundo ele mesmo defendeu em entrevista, é perceber a atuação da história no presente, no cotidiano do sambista, e fazer dela o motivo para o seu próximo passo – para o seu próximo samba. E o público abraçar uma pesquisa como a que o Samba da Antonieta faz, comprova que a memória não está restrita ao passado, mas vigente em nosso dia a dia.

“De certa forma, a gente tá lutando contra um gigante, né? Que é o mercado. Uma dupla sertaneja, hoje em dia, os cara tem rádio, acesso fácil a televisão, eles têm toda a mídia na mão pra divulgação, grana, muita grana do agronegócio – que a gente sabe que vai parar ali, né? E então o que a gente faz é um trabalho de resistência mesmo. Porque, se deixar rolar, a gente vai ouvir só o que toca no rádio, que é só o que vem de cima, que é imposto pra gente. Existe um apagamento da cultura através desse mecanismo mercadológico, então a gente se vê nessa luta, ‘ó, a gente tá aqui, ó!’, aí as pessoas veem, as pessoas ouvem, ‘pô, mas o que que é isso daí?’, ‘isso é tal coisa’. Teve samba da Jandira que eu contei pra galera que era dela e a pessoa ‘não!!! esse samba é da Jandira?’, e era uma pessoa que vem aqui todo sábado, se esguela cantando junto e não sabia, aí descobre e fica ‘nossa, que massa!’. Aí que a gente vai vendo essa conexão que vem lá do passado, porque a Jandira tá tão entranhada nisso, e isso tá tão entranhado nela, que o samba dela podia ser do Cartola!”, finaliza Galcer.

Foto: Andressa Colbalchini

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