O Curiosólogo

revista cultural caseira.
baseada em florianópolis, santa catarina.

A roda, a história e o Universo do Samba

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Fotos: Felipe Maciel

Em Florianópolis, um projeto de estudos teóricos e práticos sobre o samba vem propondo uma revisão crítica de seus conceitos e contextos.

Por Renan Bernardi

Atualizado pela última vez: 22/05/2024, às 11h36.

Catalina Delgado nasceu em Bucaramanga, no nordeste da Colômbia, e chegou em Florianópolis-SC em 2014 para seu mestrado em jornalismo, onde pesquisou a cultura popular brasileira. Já Felipe Monteiro nasceu e cresceu em Porto Alegre-RS e foi em 2016 que se mudou para a capital catarinense, depois de já ter cursado pedagogia e música no Rio Grande do Sul.

Eles se conheceram em 2017, em uma roda de samba. “Eu me lembro que cheguei e tava rolando a batucada e tinha alguém tocando pandeiro bem atravessado, né? Aí, quando eu cheguei, a pessoa que tava tocando me passou o pandeiro, porque a gente já se conhecia. Eu fiquei bem nas costas do Felipe, aí ele diz que, bem na hora que eu peguei o pandeiro, ele pensou ‘nossa, por fim chegou um pandeiro!’, aí ele virou o rosto e era eu. Aí depois que parou a música a gente foi trocar uma ideia e a gente se conheceu assim”, conta Catalina.

Essa roda uniu o casal que, desde então, também tem gerado muitas rodas de samba – e, além disso, vários outros projetos que movimentam eventos, o ensino e a criação de público sobre cultura popular brasileira em Florianópolis.

Foto: Felipe Maciel

Entre esses projetos, está o Universo do Samba, que surge praticamente como uma missão dada para Felipe por seus mestres de capoeira, que vieram de Porto Alegre para participar de uma oficina na capital catarinense. “Um pouco antes da pandemia, acho que foi no ano de 2018, eu recebi uma visita do meu mestre, do mestre dele e de um contramestre do grupo, então praticamente todo o grupo veio até minha casa e, nesse dia, eles fizeram uma cerimônia informal de batizado assim, de professor, no caso. Eles me disseram que eu estava apto a começar um trabalho, me incentivaram a fazer isso”, disse ele.

“Nesse momento, eu tava retomando o treino de capoeira, então não me sentia muito à vontade pra passar um treino de capoeira, eu tava meio enferrujado, destreinado. E aí a Catalina que teve a ideia: ‘pô, o grupo de vocês também trabalha com o samba de roda, né?’.”

Catalina conta que a ideia já veio agregada tanto da oficina de samba de roda, como de um curso produção de tambores, inspirada na produção do mestre Renato Beabá, da malta do Beabá de Angola de Porto Alegre – um dos mestres que veio visitá-los nesse dia. “A gente começou em 2019, planejando a oficina pra março de 2020, e a pandemia cai em março, sabe? Aí virou uma coisa mais íntima, com um grupo pequeno, umas sete pessoas, em casa, de máscara, com todos os cuidados.”

O estudo do samba de roda não só interessou os alunos como também fez eles buscarem conhecer mais estilos de samba e, curiosos, provocar os professores por novos conhecimentos. “E aí vem essa demanda, ‘mas e o surdo?’, e a gente foi trazendo pesquisa e discutindo, sabe? ‘Ah naquele tempo rolava tal coisa’, aí vai trazendo a proposta. Eu tava grávida, aí a gente parou, nasceu a nossa filha e, quando retomou, já tinha um interesse maior, né? De expandir nosso samba de roda, trazer um estudo da matriz africana, trazendo outros estudos”, diz Catalina.

Então, Felipe nos diz que as aulas começaram a expandir os temas dentro da história do samba. “Em outros momentos, por exemplo, trouxemos a época do Estácio de Sá, Noel Rosa, aquele paradigma do Estácio, né? Ismael [Silva]. Esse foi um início, trabalhamos um tempo nisso e depois a gente pegou o samba maxixado, que é um outro momento do samba, do maxixe e tal, aí trabalhamos um pouco isso, depois pegamos o partido alto. Então a gente foi nisso, não tinha uma proposta de já fazer esse Universo do Samba, nem tinha esse nome, né? Ele surge quando a gente foi escrever o projeto pro Governo Estadual, pro Elisabete Anderle.”

Foto: Felipe Maciel

Escrito em 2021 para ser executado em 2022 e 2023, o projeto primeiramente se chamava “Do samba de roda ao samba de raiz”, mas uma provocação da amiga Natália Poli, que ajudou a escrever o projeto junto do casal, questionou o termo “samba de raiz” e, em uma conversa entre os três, o nome muda para “Explorando o Universo do Samba: samba de roda, partido alto e outras batucadas”.

Aprovado pelo edital Elisabete Anderle, o projeto começou a ser executado em pontos descentralizados da cidade: no bairro Monte Cristo, na região continental de Florianópolis; e no Porto da Lagoa, no Leste da Ilha.

Com inscrições abertas ao público e reserva de vagas para pessoas negras e idosas, o projeto teve grande adesão e logo começou a contar também com convidados durante as oficinas. Entre eles, Mestre Téo e André Farias, que passaram aulas de samba de roda; Simone Fortes, que ensinou sobre dança; e Fabricio Gonçalves, com uma oficina de samba de carnaval.

Em 2022, eles resolvem reescrever o projeto e trazê-lo para o Centro da cidade, abrindo também núcleos de estudo. Aprovada para ser executada em 2023, essa segunda edição aconteceu no Instituto Arco-Íris, entre a Travessa Ratclif e o Calçadão da João Pinto. “A gente resolveu aumentar essa parte de formação musical, então a gente chama a Angela Coltri, que é uma professora de música, de flauta; eu fico mais na parte de violão e cavaco; a Catalina fica mais na parte de percussão; e o Téo assume o samba de roda, que era o que eu tava fazendo antes”, diz Felipe, que além da capoeira, dos blocos e do samba de roda, também teve em Porto Alegre a experiência de ter tocado no conjunto de samba de Jorge Domingos e estudado choro com Luis Machado, o que agregou muito no seu conhecimento sobre os instrumentos harmônicos.

Através da banda/produtora Baião de Dois, que também organiza o Universo do Samba, Catalina e Felipe trouxeram shows importantes para Florianópolis em 2023. Entre eles, referências da cultura popular como Dessa Ferreira, Tião Carvalho e Negadeza que, aproveitando a passagem pela cidade, participaram das aulas no Instituto Arco-Íris, sendo fontes diretas de conhecimento para os alunos.

Renan Bernardi, Felipe Monteiro e Catalina Delgado. Foto: Felipe Maciel

Escrevendo o projeto novamente em 2023, o Universo do Samba acabou ficando de suplente e não recebeu a verba que possibilitava as atividades serem gratuitas. Dessa forma, em 2024 eles estão realizando os encontros cobrando um valor de mensalidade, mas mantendo 50% das vagas gratuitas e destinadas para pessoas negras e indígenas.

Foi num desses encontros, realizados agora na Galeria Lama, também no Calçadão da João Pinto, que estivemos presentes para conhecer o projeto e conversar com os organizadores.

Rolando toda quarta-feira, a edição que estivemos presentes foi dividida em dois momentos. No primeiro, eles estudam a influência nordestina no samba e, nessa aula que acompanhamos, falaram sobre o pernambucano Madame Satã, que esteve desde a adolescência no Rio de Janeiro e participou ativamente dos primeiros anos do samba carioca, no começo do século XX.

Discutindo o filme de Karim Aïnouz que conta a história de Madame sendo interpretada por Lázaro Ramos, o momento ainda contou com audição comentada de “Mulato Bamba”, samba que Noel Rosa teria feito para o pernambucano e que é considerada a primeira música brasileira a tratar do tema da homossexualidade de forma não-pejorativa.

Com letra impressa para todos acompanharem juntos, também o samba-enredo “Madame Satã: Resistir Para Existir“, que a escola Lins Imperial fez em homenagem à Madame no carnaval de 2023 foi um dos assuntos em discussão.

Lendo, ouvindo e trocando ideias, professores e alunos discutem a relevância histórica dos assuntos e fazem comparações com a contemporaneidade, citando questões de gênero, cor e regionalidade.

Foto: Felipe Maciel

No segundo momento, já com as percussões em mãos, o estudo prático do dia foi em cima dos blocos de carnaval e suas particularidades rítmicas. Nisso, Felipe traz a sua experiência com o Bloco AfroSul Odomodê e também o Bloco Turucutá, ambos de Porto Alegre. Mas já em Florianópolis, o casal, juntamente com Iara Ferreira, comanda também o Bloco dos Afetos, que sai no carnaval do bairro Campeche, no Sul da Ilha.

Outra novidade que o projeto agregou em 2024 são as rodas de samba, que acontecem em espaços parceiros, como a Bugio (Trindade e Centro) e o Eden Beer (Campeche). “Quando o repertório era estudado, era sem pretensão, a gente fazia a roda pra terminar o ciclo e praticar o que foi estudado. Aí a galera foi curtindo, foi chamando e, tendo a parada histórica, a gente foi criando um mini-roteiro, né? A ideia é ser maior, botando samba de roda no bar, e isso virou programação dentro do Universo do Samba”, diz Catalina.

Foto: Felipe Maciel

Apesar da formação acadêmica de ambos, Catalina e Felipe reforçam que muito do conhecimento que eles passam pros alunos vem daquilo que eles aprenderam com as referências da cultura popular que eles têm contato.

Felipe nos conta que, estudando a influência da cultura indígena no samba, ele analisou um material chamado “Os sambas do Brasil”, que registra um seminário que aconteceu em Salvador, com mediação de Gilberto Gil, onde houve uma mesa de discussão sobre o tema. Porém, mesmo esse conhecimento acadêmico, foi primeirametne trazido de forma oral para eles. “Muito da nossa referência é os mestres que a gente convive, né? Por exemplo: quem jogou essa provocação foi a Dessa Ferreira, ela falou ‘ó, tem material, tem pesquisadores atualmente que atribuem muito mais a influência indígena [no samba] do que a gente pensava’. Então, pra nós, essa é a número um das referências. Aí, número dois, vem a referência acadêmica, né? O que a gente consegue encontrar de textos acadêmicos. Mas a gente sabe que, dentro da cultura popular, a produção acadêmica é muito inferior ao conhecimento que os mestres trazem”.

Outra mostra dessa importância do conhecimento dos mestres se deu no estudo do samba de matuto. “Depois a gente descobriu a questão do samba de matuto, né? Através do Caçapa, a gente fez um curso com ele, então ele falava muito disso do samba de matuto, do samba de latada, e quando o Mestre João do Pife veio até Floripa no ano passado, junto da Banda de Pífanos da Armação, eu participei nas atividades. E num momento de conversa, eu perguntei pra ele sobre isso, já tava a pesquisa em andamento e aproveitei ele pra tirar umas dúvidas, né? Perguntei sobre isso e ele disse ‘ah, o samba de matuto a gente já faz há muito tempo no sertão, todo muito pensa que é do Rio de Janeiro, mas a gente já faz lá, é uma influência totalmente indígena, das bandas de pífano’. Aí, quando ele começou a falar, me deu bem uma confirmação do por onde a gente já andava”, disse ele.

Foto: Felipe Maciel

Nesses estudos sobre a influência indígena e nordestina do samba, Felipe diz perceber uma certa falta de referência para as tradições que foram apropriadas pela música popular brasileira no sudeste. “O côco, o pife, a cantoria de viola, esses saberes, que são saberes tradicionais – tradições orais, melhor dizendo – de certa forma, as outras culturas musicais foram bebendo nessa fonte e levam pras gravações, levam pra Conjuntos, pra tudo isso que se constituiu na música popular brasileira, né? E sem dar aquela referência. Tem aquela história que diz que ‘Asa Branca’ era uma melodia que o Luiz Gonzaga pegou lá das bandas de pífano, ele mesmo não nega isso. Então é mais ou menos isso, só que isso aconteceu num nível muito maior do que a gente imagina.”

Felipe também fala que a influência indígena pode ser observada mesmo no modus operanti de improviso do partido alto, popularizado no Rio de Janeiro. “Principalmente a questão da festança, a questão do samba como esse negócio de celebração, sabe? O ritmo cabula, que chega muito ligado ao candomblé de Angola, não tinha esse lugar tanto da celebração, da bebedeira, da festa. E o que a gente acredita, o que se tem construído nesta pesquisa, é que aos poucos foi ligando o ritmo africano com esse uso social indígena, que era uma coisa tipo: ah, fez uma grande caçada, vamos ficar 10 dias aqui só tocando. Tem relatos de jornais da época que falam dos indígenas ficavam 10 dias fazendo som, muito improviso. Eles tinham muito isso de versar sobre a natureza, se o passarinho pousou no galho todo mundo repete: passarinho pousou no galo. E agora a pomba voou: e agora a pomba voou. É essa fusão, né? Essa fusão que acontecia dentro dos quilombos, onde tinha presença indígena, assim como tinha presença negra dentro de aldeias, então é por essa história que a gente tá indo.”

Foto: Felipe Maciel

Chegando ao seu quarto ano de atuação em Florianópolis, Felipe acredita que o Universo do Samba é importante para a cidade por duas vias: a que se interessa, e a que a nega. “Eu acho que Florianópolis tem um interesse, é uma cidade que tem um certo grupo social daqui – não vou dizer que é a cidade como um todo – mas há um grupo aqui muito interessado em saber de cultura popular. A capoeira aqui tem um movimento muito forte, o samba tem um movimento muito forte, tem um público, o choro aqui tem um movimento forte, então a gente sente essa demanda, né? Tem uma parte da população que tá sedenta por isso e, ao mesmo tempo, tem uma parte da população que nega tudo isso, que vem com aquela coisa do Sul é europeu, do Sul é branco. Então, acho que pelos dois lados se justifica, né? Tanto pra essa galera que quer saber, quanto pra galera que não quer saber ver que a gente tá aqui, que tem uma cultura negra aqui, tem samba aqui, tem um samba de terreiro que é típico daqui.”

Para o futuro, o Universo do Samba pretende continuar com a formação de público e de músicos, mas também visa projetos de apresentação. “A longo prazo, a gente pensa, no final disso tudo, fazer um espetáculo que vá contando essa história, um espetáculo-didático, digamos assim. Que começa com o samba indígena, samba de côco, aí vai passando pelo samba de roda, ir contando essa história toda, todos esses momentos do samba através de um espetáculo musical com dança também.”

Outra proposta é expandir digitalmente o projeto, elaborando vídeo-aulas visando democratizar e ampliar o acesso a esse conhecimento. Felipe também fala de circular com o projeto para outras cidades e Estados, visando manifestar ainda mais não só a história do samba, mas uma revisão dessa própria história por um viés crítico e popular.

“A gente pretende continuar com essa pesquisa. O mais legal é isso que você falou: trazer essa luz sobre a história, essa revisão historiográfica sob um olhar crítico, um olhar de uma certa ideologia que não vai reproduzir aquela história oficial. Mas principalmente sobre o olhar da cultura popular, do que a gente aprende com esses mestres, que a própria academia, mesmo tendo muitas vezes esse viés crítico, não tem esse viés popular, né? Então essa fala do Mestre João do Pife, pra mim, é muito confiável. Eu até posso questionar aquele texto que eu li lá, fico até ‘pô, será que é bem assim?’, mas aquela fala dele eu sei que tem um fundo de verdade ali, porque é o que ele aprendeu com o vô dele, com o pai dele, com a vó dele, que são pessoas que estão há séculos nessa tradição.”

Foto: Felipe Maciel

Acompanhe o Universo do Samba no Instagram: @universodosambafloripa

Músicos e músicas citadas na matéria:

Mestre Tião Carvalho:

Dessa Ferreira:

Negadeza:

Mestre João do Pife:

Ismael Silva:

“Mulato Bamba”, samba de Noel Rosa interpretado por Mário Reis:

“Madame Satã: Resistir para existir”, samba-enredo da Escola de Samba Lins Imperial:

Iara Ferreira:

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