O Curiosólogo

revista cultural caseira.
baseada em florianópolis, santa catarina.

Um tango para Lupicínio

Published by

on

“Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor” estreou no dia 02/05/2024 em Florianópolis com direito à roda de conversa com o diretor do filme, equipe e familiares do músico.

Por Felipe Maciel e Renan Bernardi

Atualizado pela última vez: 15/05/2024, às 11h17.

“Um tango para Lupicínio”, teria dito Lupicínio Rodrigues Júnior – o popular Lupinho – para Maurício Pessoa em uma mesa de bar, após o último show da turnê em que o repertório de seu pai era cantado por Gal Costa. Produzida pelo próprio Maurício, a série de apresentações que percorreu o Brasil teve o início e o fim de seu percurso em Porto Alegre: cidade onde Lupi também teve seu início e fim. 

“Isso é cinema!”, teria dito ele após ouvir a expressão dita por Lupinho. E ali, dividindo um vinho e celebrando a vida e obra do compositor gaúcho, surge a ideia para o filme. Porém, ao contrário dessa matéria, esse não foi o título escolhido para o longa-metragem que vem apresentando Lupicínio Rodrigues nas salas de cinema do mundo.

Maurício Pessoa, Nara Hayler e Alfredo Manevy. Foto: Felipe Maciel

Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor é um filme dirigido por Alfredo Manevy, a pessoa por quem Maurício Pessoa procurou logo após conversar com Lupinho. Com a produção iniciada em 2017, o filme percorreu cinco anos, enfrentou pandemia e situações divergentes na cultura brasileira para ser finalizado em 2022, quando começou a rodar em pré-estreia pelo Brasil e pelo mundo.

No dia 2 de maio de 2024, aconteceu a estreia do filme em Florianópolis, cidade onde hoje mora o diretor. Após a sessão, que ocorreu na sala do Paradigma Cine Arte, aconteceu uma roda de conversa com Manevy, Maurício Pessoa, que também assinou a produção executiva musical do longa, e Nara Hayler, que fez coordenação de finalização. Além desses, também teve a presença ilustre da filha do compositor gaúcho, Teresinha Rodrigues, e sua neta, Ana Rodrigues.

Foi nessa roda de conversa que Maurício contou a história que abre esse texto. Muitas outras histórias sobre Lupicínio e a produção do filme também foram contadas e, interessados por todo esse contexto, que cobre a vida e a obra de um dos mais ímpares nomes da história da música brasileira, resolvemos realizar esse documento para O Curiosólogo.

Alfredo Maney, Teresinha Rodrigues e Ana Rodrigues. Foto: Felipe Maciel

Entrevistado para essa matéria, Alfredo Manevy nos contou sobre o que motivou ele a aceitar o convite de Maurício e da família Rodrigues para dirigir esse longa. “Eu já conhecia Lupicínio, já admirava e tinha Lupicínio na minha playlist de preferidos afetivos do samba brasileiro. Conheci Lupi pela voz de [Gilberto] Gil, interpretando ‘Esses Moços, Pobres Moços’, e sempre me intrigava como um sambista podia vim de um lugar tão improvável, né? Perto da fronteira do Brasil com o Sul, com a Argentina, de um Estado que não tem, em tese, o mesmo lugar do Rio de Janeiro, da Bahia, na relação com o samba. E as poucas fotos que eu tinha do Lupicínio era ele com sobretudo, usando aqueles agasalhos – o que não é muito a imagem de um sambista, né? Aqueles casacões do Sul do Brasil. Então tudo isso me chamava a atenção, me intrigava. Eu sabia que seria um desafio enorme lidar e buscar dar conta desse enigma do Lupicínio Rodrigues: Como é que ele conseguiu chegar ao centro da indústria musical do tempo dele? Como é que ele, sem sair de Porto Alegre, conseguiu inventar praticamente um gênero musical? Tudo isso me intrigava. Não que o filme esclareça ou resolva o enigma de Lupicínio, mas esse enigma me fascinava, e acho que ele move o filme, move a narrativa do filme. E isso me atraia, como cineasta, a tratar de uma figura tão potente, tão enigmática ao mesmo tempo, cujas músicas são tão profundas melodicamente, potentes, que resistem ao tempo, e tão pouco se sabe desse personagem do Sul do Brasil. Então tudo isso me moveu a aceitar o desafio de fazer o filme.”

O longa começa com recortes de diferentes cantores interpretando “Nervos de Aço”, de Lupicínio. Entre Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Adriana Calcanhotto e tantos outros, o filme já inicia nos apresentando a abrangência da influência que Lupi exerceu na canção brasileira, atravessando o seu tempo, conquistando novas gerações e se tornando, como Manevy bem disse, resistente ao tempo.

Logo após, ao começar a contar a história de vida de Lupicínio, imagens da Ilhota – região periférica de Porto Alegre onde o compositor nasceu – são apresentadas no filme. As fotos da água que alagava – e ilhava – aquela vila tiveram  um impacto ainda mais doloroso em quem assistia o longa naquele dia em Florianópolis: mais de 100 anos depois, as águas estavam novamente ilhando Porto Alegre – só que agora de maneira ainda mais drástica.

Ilhota em 1920.

Manevy nos contou que o filme teve três frentes de pesquisa: Uma liderada por Cris Lopes, que reuniu materiais audiovisuais (vídeos e filmes); outra liderada pelo Grupo de Estudos do Pós-Abolição, vinculados com a Universidade de Santa Maria (UFSM) e que realizam pesquisas sobre a memória negra do Rio Grande do Sul e, nesse projeto, trouxeram dados da passagem de Lupi por Santa Maria e fizeram a genealogia da família Rodrigues até África; e ainda outra, encabeçada por Lucas Nobile, que focou na pesquisa musical através de áudios e fotografias.

Nessa pesquisa de Nobile se encontra um dos grandes trunfos do filme: uma entrevista realizada com o compositor para o programa Encontros Com a Música Brasileira, do Museu da Imagem e do Som, que era dada como perdida. Nela, podemos ouvir, de forma inédita, o próprio Lupicínio contando a sua história, com todo seu humor e propriedade.

Na entrevista com Manevy, descobrimos ainda que foi o próprio Lupicínio quem procurou o Museu para dar seu depoimento. “Quando eu fui conversar com o Ricardo Cravo Albin, que é um dos entrevistadores, ele me contou que foi o próprio Lupicínio que procurou o Museu pra dar essa entrevista. Ele ficou sabendo desse programa, ficou sabendo que tavam registrando e ele que procurou o Museu. E o Ricardo me disse: ‘poxa, a gente ficou muito feliz. Porque claro que o Lupicínio tava na lista, mas quando ele procurou, ele mostrou que ele queria falar, ele tinha algo a dizer’. E isso me chamou atenção no sentido de que o Lupicínio queria contar a sua versão dos fatos, ele queria dar a sua versão da história, ele queria trazer a tona essa percepção sobre a música popular brasileira, sob a sua própria vida, sua biografia, contar essa história com o seu olhar, né? E isso me deu ainda maior motivação de dar a essa entrevista esse peso no filme. Eu acho que isso é muito interessante.”

Encontrada por Lucas Nobile, a gravação passou pelos cuidados de Kátia Doto, que fez a edição de som, mixagem e a recuperação do áudio, permitindo ser possível usá-lo na produção. Essa verdadeira raridade trouxe ao filme histórias incríveis narradas por seu personagem principal, desde sua passagem pelo Exército em Santa Maria, até as anedotas de seu burrinho, que levava o boêmio de bar em bar e, depois de muitos tragos, ainda o deixava em casa.

Entre outros muitos causos contados por Lupi, e que são muito bem amarrados na narrativa do filme, esse registro de voz também faz o filme ganhar um valor outro enquanto registro, pois além de apresentar a história do compositor gaúcho, ainda marca a importância da conservação do acervo histórico da cultura brasileira.

Cartaz do filme Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor.

Outra história que o filme ajudou a trazer à tona foi o caso de quando uma canção de Lupicínio, “Se Acaso Você Chegasse”, foi usada como trilha sonora de um musical de Hollywood – e que chegou a ser indicado ao Oscar. Com uma versão instrumental e jazzística, a música faz parte da trilha de Lady, Let’s Dance, de Frank Woodruff, lançado em 1944 e indicado à premiação da Academia em 1945.

Acontece que os créditos para o compositor nunca foram mencionados e, mesmo a versão sendo reconhecida em vida pelo próprio Lupi, ele mesmo não quis ir atrás de seus direitos. Porém, agora, quando o filme traz essa história de volta para discussão, o caso parece tomar um rumo diferente, com a família Rodrigues e um advogado norte-americano envolvidos no caso. Manevy conta melhor:

“Quando o filme ficou pronto e exibimos em Porto Alegre, a família do Lupicínio Rodrigues assistiu a primeira exibição e todos ficaram muito comovidos com a história do Oscar – que eles não conheciam. Então eles decidiram mandar uma carta pra Academia, dizendo que eles tomaram conhecimento do uso indevido da música do Lupicínio num filme americano, e que esse filme foi indicado à Melhor Trilha Sonora e que, então, eles pediam à Academia um reconhecimento póstumo do Lupicínio, tanto como autor da música quanto como parte da trilha sonora indicada ao Oscar, né? Essa carta foi enviada e protocolada junto ao CEO da Academia, que é o Bill Kramer – ele recebeu essa carta, tá? Isso eu sei, tá em mãos dele – E bom, o que que aconteceu depois disso: o filme foi exibido em Los Angeles e um advogado de grandes celebridades do entretenimento nos Estados Unidos, como Rihanna e Jay-Z, que é o Miles Cooley, ele assistiu o filme e também ficou muito sensibilizado e se ofereceu pra entrar, pro bono, na causa da família. Então ele, pra ajudar a família, pediu uma série de documentações, como: o certificado de registro da música pra atestar o ano; pediu um parecer da Unicamp atestando que a música do filme é mesmo ‘Se Acaso Você Chegasse’ do Lupicínio; pediu toda a documentação referente a música pra traduzir para o inglês e montar um processo jurídico pra fortalecer o processo e representar a família.”

“Bom, o que que ele fez: ele deu entrada na MGM, que é a dona do filme hoje, pra que primeiro a MGM reconheça o crédito do Lupicínio, e feito isso, abre-se caminho pra Academia reparar, fazer justiça a indicação de Lupi. E é nesse pé que está agora, estamos aguardando isso nesse momento. Mas virou uma grande comoção no Brasil e muita gente se solidarizou por entender que não é só um problema do Lupicínio, é uma questão que envolve a música popular brasileira e o devido respeito que essa música merece. Quando tem uma canção sua usada num filme da indústria hollywoodiana, nada mais justo que o crédito e o devido reconhecimento de quem compôs. Isso vale pra qualquer autor, qualquer artista, né? Quanto mais pra Lupicínio Rodrigues.”

Foto: Felipe Maciel

Outro trunfo do filme é atestar a modernidade da obra de Lupicínio. Muitas vezes visto como brega ou cafona em suas temáticas e, ainda em vida, colocado sobre certo ostracismo com as inovações da música brasileira daquele tempo, o longa é muito feliz em mostrar a relevância da música lupiciniana através das gerações, tendo sido cantado desde por João Gilberto até em versão contemporânea da cantora gaúcha Valéria Barcellos – que é apresentada no filme.

É também aspecto de sua modernidade a forma como compunha em diferentes estilos musicais. Sendo amplamente conhecido como um sambista, Lupi não pode ser resumido dentro de um único estilo musical. Arthur de Faria, biógrafo e estudioso do compositor, em depoimento para o filme aponta que, além do samba-canção, também o tango tem papel fundamental na formação musical de Lupicínio. Um ótimo exemplo que ele dá é a versão de “Vingança”, clássico tanto do repertório do samba brasileiro, quanto do tango argentino:

¡Venganza!

Em certa parte do filme, um depoimento em vídeo do próprio Lupicínio mostra ele falando que faz música “de tudo que é tipo”. E ainda se vangloria de ser “o primeiro camarada a gravar a música lá do Sul”, citando o seu xote “Felicidade”. Mesmo sendo um estilo de origem alemã, é compreensível Lupi considerá-lo uma música gaúcha, visto a vasta popularidade do gênero no Rio Grande do Sul. Porém, é outra canção – essa até bem mais gaúcha – que pode mostrar esse seu interesse pela música do interior do Estado, é a milonga “Cevando o Amargo”. Além disso, Lupicínio é compositor da guarânia “Judiaria” e a já citada “Se Acaso Você Chegasse” tem células facilmente caracterizáveis de jazz.

Desconsiderada essa sua vastidão de referências, a relevância do compositor gaúcho é, de certa forma, injustiçada dentro da história da música brasileira. E um homem negro no Sul brasileiro costuma ser vítima de muitas injustiças – o filme manda bem em mostrar isso.

Consciente de sua condição social e desinteressado em perpetuar a imposta marginalidade dessa condição, Lupi se orgulhava de ser o primeiro sócio-torcedor negro do Grêmio de Foot-Ball Porto-Alegrense – além de ter sido o compositor de seu Hino. Também ele, ao ser impedido de entrar num bar da capital gaúcha, não teve receio de acionar a Lei Afonso Arinos, que combatia crimes de racismo – um depoimento do filme diz ter sido Lupi um dos primeiros a se usar da tal lei para reverter um caso do tipo.

Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues

Na roda de conversa pós-filme, Manevy conta como foi surpreendido ao receber mensagens positivas do filme não apenas de fãs e interessados em música brasileira, mas também de figuras pouco esperadas, desde Miguel Rosseto (ex-Ministro do Governo Lula) até Roberto Jefferson e um coronel do Exército do Rio Grande do Sul. Isso mostra que, a música, até mesmo a feita por um sujeito negro, que sofreu todas as suas injustiças, é algo que une todos os espíritos nacionais.

E a união dos espíritos é algo que realmente pode ser creditado à Lupicínio. Sua filha Terezinha, ao contar sobre a greve dos bondes de Porto Alegre que gerou o “até a pé nós iremos” do Hino do Grêmio, fala que a promessa de ir a pé realmente foi cumprida, com Lupi guiando os torcedores até o estádio onde a partida do tricolor gaúcho aconteceria naquela data. Já sua neta, Ana, conta de lembrar dos almoços de domingo na casa do avô, com ele chegando em grande serenata, acompanhado de muitos músicos e amigos que ele vinha recolhendo no caminho de volta para casa. Lupi é realmente uma força agregadora.

Foto: Felipe Maciel

Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor estreou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no final de 2022, já tendo passando por mais de 20 festivais pelo Brasil e pelo mundo e recebendo prêmios como o de Melhor Documentário – eleito pelo público! – em Lisboa, no Festival Internacional da Língua Portuguesa. Estreando nos cinemas em 2024, o filme acumula semanas de cartaz em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza e Florianópolis (onde ficou apenas uma semana sendo exibido no Paradigma Cine Arte).

Além disso, o filme pode ser assistido nas exibições promovidas pelo Canal Curta, parceiro da produção, e também pelo ClaroTv e Curta On, acessível no Amazon Prime.

Para saber mais sobre o filme, leia as informações disponibilizadas pela Plural Filmes (outro parceiro do longa) no site.

*Esse texto é também uma homenagem à Paulo César Pereio, grande ator brasileiro que foi narrador desse filme e faleceu na data da publicação desse texto.

Playlist exclusiva

Para acompanhar a matéria, criamos também uma seleção com interpretações das canções de Lupícinio Rodrigues, mostrando como sua obra atravessou gerações: desde os vozeirões do samba-canção das décadas de 40 e 50, até interpretações ousadas gravadas no século XXI.

Ouça aqui:

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Descubra mais sobre O Curiosólogo

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue lendo